Pobres Criaturas
"Ao curvar-te com a lâmina rija de teu bisturi sobre o cadáver desconhecido, lembra-te que este corpo nasceu do amor de duas almas; cresceu embalado pela fé e esperança daquela que em seu seio o agasalhou, sorriu e sonhou os mesmos sonhos das crianças e dos jovens; por certo amou e foi amado e sentiu saudades dos outros que partiram, acalentou um amanhã feliz e agora jaz na fria lousa, sem que por ele tivesse derramado uma lágrima sequer, sem que tivesse uma só prece. Seu nome só Deus o sabe; mas o destino inexorável deu-lhe o poder e a grandeza de servir a humanidade que por ele passou indiferente.” - Karl Rokitansky (Oração ao cadáver desconhecido, 1876).
Pobres Criaturas (2023), o projeto mais maximalista e acessível da filmografia de Yorgos Lanthimos, destaca a consciência da ignorância e a ânsia pelo conhecimento através da odisséia de Bella Baxter (Emma Stone).
O ensino de anatomia nas primeiras universidades modernas na Europa era constituído pela apresentação de peças cadavéricas em salas especiais com similaridade a um anfiteatro. Logo no início, o jovem Max McCandles, (Ramy Youssef), mostra-se encantado e interessado em colaborar com a ciência, tornando-se assistente do Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe). A relação entre os anatomistas e os cadáveres se baseia em uma relação de grande respeito, uma vez que, tais cadáveres humanos, geralmente indigentes, são parte fundamental para a progressão do conhecimento.
Ao adentrarmos na construção fantasiosa do filme, Max é inserido na rotina de vida do Dr. Godwin, deparando-se com uma mulher estranha com comportamentos infantis. Servindo ao doutor como uma espécie de experimento que traz consigo laços de paternidade, logo é revelado que a criatura se chama Bella Baxter e é fruto de um inédito método cirúrgico de transplantes de cérebros.
Para a época vitoriana retratada na obra cinematográfica, a morte pode parecer como um alívio, uma vez que o estado e a igreja estavam em conjunto na manutenção dos costumes tradicionais, principalmente no que se refere ao papel da mulher enquanto provedora do lar e da felicidade de seu marido. O que a portadora do corpo que agora pertence à Bella Baxter se recusou a fazer, mesmo com um feto em seu ventre.
A mente ainda infantil é uma folha de papel em branco com inúmeras possibilidades do que pode vir a ser. Sartre, filósofo francês contemporâneo, afirmava que a existência precede a essência, o homem existe primeiro, se encontra, surge no mundo para se definir em seguida. Entretanto, a situação de Bella Baxter é complicada, pois a indefinição entre mente e corpo acaba fazendo com que os indivíduos ao seu redor, sobretudo os homens, tentem manipulá-la, aproveitando-se da sua imensa vontade pelo empírico para colocá-la em alguma caixinha. Há sobretudo o interesse pelo corpo, não como ferramenta para o prazer e conhecimento mútuo em uma relação de intimidade e confiança, mas para usá-lo como ferramenta de controle. Duncan (Mark Ruffalo) é um bom exemplo disso. Inicialmente, mostra interesse pela protagonista de forma casual, mas conforme o tempo avança, ele se revela um enganador com o ego ferido por Bella se relacionar com homens além dele.
O interesse de Bella pelo empírico é impulsionado pela construção de universo desenvolvida ao longo da história. Os visuais do século XIX são acompanhados por uma estilização surrealista e steampunk. Durante sua aventura, cada locação é acompanhada por uma saturação de cores marcante, coisa que faz falta no cinema atual em meio ao excesso de filmes com filtro cinzentos. Às vezes, a contemplação visual é interrompida pela edição, o que não compromete em nada na qualidade da obra, porém pode frustrar alguns apaixonados por filmes fantasiosos e seus universos chamativos.
Até quando Bella não está pensando experimentalmente, há ciência presente: em várias cenas a personagem acaba cuspindo comida que acha desagradável. Normas de etiqueta à parte, é conhecido atualmente que a maior parte da serotonina (conhecido como o hormônio da felicidade) presente no indivíduo é produzida no trato gastrointestinal. Sim, a frase que você é o que come é correta quando se trata de alimentação. Já o humor e senso de esquisitice do filme também abrem margem para reflexões sérias: o longa possui uma passagem em que o antigo marido de Bella - ou melhor, Victoria Blessington antes de morrer e ser transplantada - tenta fazer uma mutilação genital feminina envolvendo a remoção do clítoris da protagonista. O homem busca eliminar os impulsos do desejo que fazem Bella Baxter alguém diametralmente diferente de uma esposa em serviço ao marido. Na vida real, tal prática, muitas vezes justificado por razões culturais ou religiosas, é sustentada pelo desejo de controlar a sexualidade feminina.
É comum na filmografia de Yorgos Lanthimos que algum personagem viva num ambiente em que é menos favorecido diante da conjuntura daquele mundo ficcional e que deseja mudar para conseguir independência, como visto principalmente em Dente Canino (2009). Aqui em Pobres Criaturas, a protagonista vence de diferentes formas, sendo a autora de sua própria história e atingindo a maturidade intelectual. Seu antigo marido, teimoso e com atitudes grosseiras como um bode velho, acaba tendo um final apropriado. Ao embarcar em uma jornada que passa por situações que vão do BDSM aos estudos da causa socialista e relacionamentos não-heteronormativos, Bella Baxter mostra que a superação da morte é seguida do florescimento de uma intensa vontade de viver.
Poor Things 2023
142 minutos
Direção: Yorgos Lanthimos
Elenco: Emma Stone, Willem Dafoe, Ramy Youssef, Jack Barton, Margaret Qualley, Christopher Abbott, Kathryn Hunter
Roteiro: Tony McNamara