O Agente Secreto
A instrumentalização da memória é uma preocupação do KMF, e que parece mais latente nos últimos anos, talvez pelo contexto pós pandemia e pós governo Bolsonaro. Em essência, Retratos Fantasmas e O Agente Secreto são o mesmo filme, mas se Retratos perdia pontos pela intromissão do diretor no desenvolvimento da pesquisa histórica, Agente, por ser uma ficção, soa acertadamente mais sobre outras pessoas que não o diretor.
A história do filme é simples: um professor universitário se torna um perseguido político por ousar defender o desenvolvimento técnico e científico fora do eixo Rio - SP contra um oligarca com delírios de pureza racial, recursos financeiros e o maquinário da ditadura. O trunfo do filme está na escassez dessas informações, entregues ao público de forma deliberada durante boa parte da projeção, junto a uma montagem que desorienta.
A abordagem da montagem mata dois coelhos com uma cajadada só: recria a sensação de borrão comuns da memória, que lembram de eventos e situações especiais muitas vezes descontextualizadas de lógica, assim como recria simultaneamente a sensação de paranóia do período militar ao construir um cenário de perigo constante cujos motivos para temer o cotidiano não são claros.
Se a fragmentação das informações e contextos acabam por um lado tornando o filme emocionalmente distante, por outro reforça o período que retrata como sendo muito maior que o protagonista. Nesse sentido, é um filme mais bem realizado que Uma Batalha Após a Outra. Outro projeto cujos personagens racializados, imigrantes e refugiados são pontos de interesse mas em quesito de importância estão sempre abaixo dos protagonistas brancos, cujos interesses e personalidades são bem trabalhados às custas da estereotipagem bem intencionada dos demais.
Aqui, a história do protagonista está sempre interligada às histórias de outras pessoas em situações similares, todos sempre escondendo alguma coisa, debaixo de um mesmo risco iminente não pronunciado. Nenhum personagem é particularmente bem desenvolvido para além do estereótipo, são todos “agentes secretos” usando máscaras que escondem seus passados, mas todos são nivelados por essa necessidade de auto-proteção, impedindo que o drama de um seja retratado como mais importante que o dos demais, apesar do tempo de tela não ser igualitário.
Se Ainda Estou Aqui era muito centrado na figura da família como representante de um povo, O Agente Secreto consegue chegar mais próximo de representar uma pequena população diversa, vítimas do mesmo sistema e sem os mesmos recursos, mas com realidades distintas. Enquanto reconstrução da memória de um tempo, o Kleber é mais ambicioso e mais bem sucedido em sua abordagem mais próxima de filmes de gênero do que do melodrama com energia de biopic.
O que joga contra são questões que já são críticas recorrentes ao cinema do Kleber: suas tendências a simplificações políticas, explicações didáticas e mais do que nunca, digressões que reforçam suas obsessões cinéfilas sem necessariamente convergir com a história que esta contando.
Eu admiro que raça e sexualidade diversas estejam presentes nesse Recife fantasioso do filme, eles simplesmente existem como existem no mundo real. Mas o texto tem dificuldade em passar por essas pessoas sem dar uma piscadela verbal pro público de que racismo e homofobia existem. Não é um problema em si, mas a falta de peso dessas observações tiram do filme qualquer traço de discussão que ele poderia gerar. Soa como uma auto-bajulação, não como uma provocação.
Daí chegamos na perna cabeluda, minha cena favorita do projeto, e tambem a que mais me incomoda. Como momento isolado, ela mostra o talento do Kleber pra trabalhar em gêneros distintos, um controle tonal e cênico daquilo que se aproxima de um filme de terror trash. Mas no grande esquema das coisas, por que isso está ali?
Obviamente, assim como a perna dentro do tubarão, ele está discutindo a manipulação da realidade, um projeto midiático que oculta violências sistêmicas reais pelo prisma da fantasia e da espetacularização, transformando em contenda a violência que determinados corpos estão sofrendo.
Ainda assim, no filme o folclore ganha forma em um ponto de cruising, com sexo homossexual em todo canto, até que um casal é agredido pela perna. Durante a ditadura, a comunidade LGBTQIA+ foi vítima de violência policial, perseguições sistemáticas, prisões, além de limpeza dos espaços que essas pessoas frequentavam, tudo em nome da moral e dos bons costumes.
Não é que eu queira que todo filme discuta as dores dos gays, mas a cena está no filme, a semiótica da violência é clara. Por que encenar essa violência, mesmo que pela ótica fantasiosa, se ele não tem nada a dizer sobre esse grupo e suas memórias? Constatar que essas violências eram cooptadas pela mídia e transformadas num circo é suficiente? Pra mim não foi.
Durante as inúmeras digressões, são vários os momentos onde esse tipo de violência ou perseguição contra outros corpos são mostrados e imediatamente depois esquecidos. Funcionam como exercício de gênero, funcionam como #lacre, são divertidos de ver, mas não tem o mesmo tratamento da história principal que passa pelos refugiados, ao ponto de muitas vezes soarem como nada além de uma referência meio esvaziada.
Admiro que o Kleber esteja em um momento da carreira onde possa se permitir esse tipo de excesso, esse tipo de sequências que brincam com tom e forma do projeto, mas o interesse político da coisa toda é evidente e pronunciada em texto, o que faz com que mesmo seus pormenores mereçam ser questionados com a mesma régua.
Ainda assim, são pormenores, o que realmente fica ao fim da projeção é a melancolia de que certas histórias são apagadas. Faz sentido que algumas sejam apagadas ou apressadas até dentro do próprio filme. Nos apresentar com tanto carinho as pequenas histórias de tantos personagens que nos apegamos apenas para destruir suas existências décadas depois é uma lembrança triste do passado do país, mas também é uma forma bonita de se advogar pelo trabalho de arquivista e pesquisa que está no filme e fora do filme, em uma nova maneira de se instrumentalizar a memória.
O Agente Secreto 2025
158 minutos
Direção: Kleber Mendonça Filho
Elenco: Wagner Moura, Maria Fernanda Cândido, Gabriel Leone, Carlos Francisco, Tânia Maria, Robério Diógenes, Roney Villela
Roteiro: Kleber Mendonça Filho



